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terça-feira, 13 de junho de 2017

529 - As bibliotecas

As bibliotecas - Valter Hugo Mãe 

As bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem  está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros.
Todas as coisas do mundo podem ser chamadas a comparecer à força das palavras, para existirem diante de nós como matéria da imaginação. As bibliotecas são do tamanho do infinito e sabem toda a maravilha.
Os livros são família direta dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se  entrassem para dentro do próprio ar, a ver o que existe dentro do ar que não se vê.
O leitor entra com o livro para dentro do ar que não se vê.
Com um pequeno sopro, o leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das
bibliotecas.
Os livros são toupeiras, são minhocas, eles são troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram, choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem como crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir. Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e baixo, o esquerda e direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Querem ver e contar. Os livros é que contam.
As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam trombetas a cada instante e há sempre quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra.
Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem refilarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se a surpreender. Os livros divertem-se.
As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não têm vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais altas.
Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores são tão obstinados com a leitura que nem acendem a luz. Ficam com o livro perto do nariz a correr as linhas muito lentamente para serem capazes de ler. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Os melhores leitores, um dia, até aprendem a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Dão palavras que fazem sentido e contam coisas às outras pessoas. Já vi gente a sair de dentro dos livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das palavras e vestem-se à pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes. Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar despacho. Sim, compete-nos pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.
Este texto é um abraço especial à biblioteca da escola Frei João, de Vila do Conde, e à biblioteca do Centro Escolar de Barqueiros, concelho de Barcelos. As pessoas que ali leem livros saberão porquê. Não deixa também de ser um abraço a todas as demais bibliotecas e bibliotecários, na esperança de que nada nos convença de que a ignorância ou o fim da fantasia e do sonho são o melhor para nós e para os nossos. Ler é esperar por melhor. 

domingo, 11 de dezembro de 2016

517 - As bibliotecas dos escritores

De uma fabulosa conferência de Clara Crabbé Rocha sobre a biblioteca de seu pai, Miguel Torga, proferida no encontro Eterna Biblioteca, em novembro de 2016 em Sintra, retenho muita coisa na memória que lamentavelmente não registei e que permanecerá apenas na minha memória afetiva (não se fala sobre a importância da leitura, fala-se dos livros, lêem-se os livros).

Sobre uma biblioteca pessoal tive a sorte de registar algumas ideias soltas que as transcrevo:
Existiu o conceito de biblioteca como sendo a possibilidade de preservar os livros escondendo-os das mãos dos homens. [...] Cada biblioteca pessoal é diferente da outra. tem uma carga afetiva e memória que associamos a certos livros. Uma biblioteca pessoal de um escritor é feita de memórias e afetos... é uma presença carregada de recordações. De leituras de infância que as fizemos aos vinte anos e retomámos aos cinquenta.  

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Procuro na internet um excerto de um texto dito por Clara Crabbé Rocha e descubro outro, publicado no jornal público cujas ideias mestras, de alguma forma, também foram partilhadas pela conferencista na sessão. Por isso as transcrevo aqui,
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"Miguel Torga teve muitos lugares de escrita, como a sua obra largamente documenta, mas o n.º 3 da rua Fernando Pessoa foi um dos mais constantes, a par do consultório no Largo da Portagem [em Coimbra] e da casa natal em Trás-os-Montes", escreveu a filha, Clara Crabbé Rocha, na brochura da casa-museu. Na casa podemos visitar o escritório, espaçoso, sobre a varanda do primeiro andar. Na mesa, a máquina de escrever Royal; nos armários, milhares de livros (muitos ainda por inventariar). No recanto, um divã a que chamava "o meu sarcófago", inspirado na torre de leitura de Montaigne. "O lugar de Miguel Torga era a própria escrita, era dentro dela que o poeta vivia em certas horas, ao mesmo tempo alheado e inteiro. Era na escrita que gostava que os leitores o procurassem, o compreendessem e o amassem. Por isso a casa-museu não é mais do que uma peça dum conjunto biográfico, convidando à leitura e à fruição da sua obra", continua a filha."

A montanha é, de facto, a grande musa da obra de Torga: "A verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serra nua." Só está bem quando regressa a São Martinho de Anta, onde o Douro corre no fundo do penedo rasgado em socalcos e onde as pedras da serra são duras e roladas como gigantescos seixos. "Este Trás-os-Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão e entra-se logo no paraíso!" A relação com a paisagem é quase pudica, ele não se mistura nela, não se tornam um. Pelo contrário: o poeta respeita-a, divindade suprema, ama-a "de uma maneira casta, comovida, sem poder macular a sua intimidade em descrições a vintém por palavra". Sabe que está em casa quando chega à terra, chama ao Douro a sua "carótida", é na montanha que bate o coração: "Chego a uma terra e não resisto: tenho de me meter pelos campos fora, pelas serras, pelos montes, saber das culturas, beber o vinho e provar o pão."

"A semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto, o pastoreio, Adão e Eva, por exemplo, recorrem nos seus livros como se fossem, não ideias, mas imagens irradiantes", escreveram Óscar Lopes e António José Saraiva. Isto na sua obra ficcional, mas também nos Diários: 16 volumes de 1932 a 1993. Começam, Torga é ainda um estudante de Medicina em Coimbra, vive numa república (a mesma onde anos depois descerraram uma placa de homenagem - ele não gostou), atravessam o século XX, as suas viagens, inquietações, a solidão da escrita, mesmo já marido, pai, amigo, e, antes, jovem, preso no Aljube (meses entre 1939 e 1940), crítico observador do mundo. "Nem romance, nem contos, nem poemas. Apenas este monólogo. Se isto pudesse continuar não era de todo desengraçado publicar mais tarde, na íntegra, os frutos insossos de alguns dias de repouso. Um voluminho doméstico, espontâneo, descuidado, para o qual eu fosse, como leitor, sem a relutância com que vou sempre para os outros que escrevi", escreveu no primeiro Diário, ainda em 1940. Publicou-os um a um em edições de autor (a Dom Quixote fez uma primeira reedição conjunta, em quatro volumes, em 1995 após a sua morte).

Casa de amigos

A visita à casa-museu começa com um poema de Torga, um longo auto-retrato que, de certo modo, define o homem cuja casa, espaço íntimo, percorremos. "É preciso compreender Miguel Torga para compreender a sobriedade desta casa", explica a vereadora. Mas "apesar de sóbria tinha elementos de extremo bom gosto". A filha, Clara, conta que Torga e Andrée "foram fazendo ao longo dos anos o interior de sua casa, percorrendo os antiquários e adquirindo aos poucos os móveis e as peças de arte que durante varias décadas aconchegariam o seu quotidiano". Por isso, a casa é feita de "vivências, memórias, objectos", é a casa dos "pais", "que foi também a minha durante quase três décadas", escreve.

Aqui recebia os amigos. E por aqui passaram, segundo a filha, presidentes da República, primeiros-ministros, políticos, embaixadores, intelectuais, editores estrangeiros. "O vinho do Porto habitualmente servido às visitas era um dos rituais dessa forma de convivialidade, como o eram também os almoços ou jantares de perdizes estufadas ou da famosa vitela assada que Ruben A. gostosamente evoca na sua autobiografia O Mundo à Minha Procura", escreve Clara Rocha.

É o que conta a vereadora: ainda há muitos amigos de Torga, gente que o conheceu, com quem conviveu, que visita a casa e se lembra deste e daquele episódio. Se esperamos evocações profundas porque estamos na casa de um escritor, é em vão: as memórias são íntimas, sim, mas sobre os assados da Dona Andrée ou as patuscadas com os amigos à mesa. O poeta e político Manuel Alegre corrobora, no catálogo da casa: "Andava em campanha eleitoral, ele [Torga] encontrou-me na rua e disse-me: fui caçar para ti, anda jantar lá a casa. (...) Foi, de certo modo, uma iniciação. E eu saí daquela casa com a sensação de ter sido armado cavaleiro duma ordem desconhecida".